top of page

A UMBANDA QUE

CANTA E ENCANTA:

fé, luta e conquistas

Uma manhã quente, típica de Fortaleza. Do Centro Cultura Belchior era possível observar o balanço cadenciado das águas da Praia de Iracema. Lá de dentro ouvia-se um som. Palmas, vozes e atabaques se misturavam numa melodia alegre, alta e agradecida.  Foi um dia de comemoração aquele 29 de setembro de 2017, para ser lembrado por umbandistas e candomblecistas, que conquistaram o registro da festa de Iemanjá como patrimônio imaterial da cidade.

O tombamento marca um capítulo importante na história da umbanda, que desde seu nascimento luta contra a repressão. Em Fortaleza, durante muitos anos o culto umbandista foi criminalizado. Segundo Zelma Madeira, coordenadora especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial, “até a década de 70, 60, aqui em Fortaleza não podia ter os toques da umbanda no Centro. Tinha que tocar escondido, em áreas mais afastadas”.

Mãe Tecla, que cresceu dentro da religião,  recorda esse cenário. “Quando nós éramos crianças, minha mãe naquela época só podia fazer as giras escondido, à noite, na mata, pra que ninguém visse. Na época eu tinha cinco, seis anos, e era dessa forma que acontecia”.

As proibições não desanimaram os umbandistas, que realizam a festa de Iemanjá, orixá rainha das águas, há mais de 50 anos. Tecla lembra, também, das dificuldades para as comemorações em décadas passadas. “(A festa) era feita na Praia do Futuro, porque tinha umas dunas de difícil acesso da polícia chegar lá. Então 1940, 1950 e 60, era feita assim, totalmente escondida, porque a polícia não podia ver”. A liberdade de culto foi conquistada, não sem esforço. Hoje, considerada a maior festividade umbandista da capital cearense, a Festa de Iemanjá continua sendo realizada todos os anos nos dias 14 e 15 de agosto, nas praias do Futuro e de Iracema.

“Até a década de 70, 60, aqui em Fortaleza não podia ter os toques da umbanda no Centro. Tinha que tocar escondido, em áreas mais afastadas ”
Zelma Madeira

A umbanda no Ceará nasceu com Mãe Júlia Condante, portuguesa que abriu o primeiro terreiro de umbanda no Estado, lutou pela liberdade de expressar sua fé sem reprimendas e pela realização pública da festa. Outros nomes marcam essa história, como o de Manoel Rodrigues de Oliveira, fundador da União Espírita de Umbanda (Uecum). 

 

A Uecum permanece até hoje. Considerada a principal instituição representante da umbanda no Estado, é personagem constante nos movimentos que buscam dar visibilidade à religião. “A Uecum é uma instituição de resistência. Resistência ao tempo, a intolerância religiosa”, ressalta a vice presidente, Tecla Sá de Oliveira.

“A Uecum é uma instituição de resistência. Resistência ao tempo, a intolerância religiosa”
Mãe Tecla

O processo para o tombamento da festa também não foi um caminho fácil. Foram realizados dois pedidos de registro da festa, o primeiro pela Uecum, em 2011 e outro pelo Instituto de Difusão da Cultura Afro-brasileira (Indica), em 2015. Graça Martins, responsável pela condução da célula de Gestão em Patrimônio Imaterial da Coordenação do Patrimônio Histórico e Cultural da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor), relata que o processo para chegar à votação final se constituiu em três partes.

A primeira, quando foi realizado um levantamento bibliográfico sobre a cerimônia, a segunda, quando acompanharam as duas festas durante 24 horas e fizeram um mapeamento dos terreiros ali presentes. Na última etapa foram realizadas visitas aos terreiros mapeados, somando um rico conjunto de informações sobre a celebração. “A gente tem um acervo com cerca de seis mil fotos, vídeos, e mais a presença dos textos e as nossas próprias escritas”.

Os resultados obtidos nessa pesquisa foram apresentados durante a reunião de votação, promovida pelo Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Histórico e Cultural de Fortaleza (Comphic).  Por unanimidade o resultado foi favorável ao tombamento da festa. Com o registro, a comemoração passa a ser incluída no calendário cultural de Fortaleza, garantindo a colaboração de órgãos públicos na manutenção da tradição.  
 

60

Mais de 
terreiros fizeram parte do mapeamento

O secretário de  cultura de Fortaleza, Evaldo Lima, apontou as responsabilidades que cabem agora ao Estado. “Isso (o  registro da festa) quer dizer apoio logístico durante a realização do evento, durante a sua preparação, quer dizer o comprometimento em relação a própria segurança de todos os participantes, significa na verdade o apoio institucional a presença, o reconhecimento dessa manifestação cultural”.

 

Mas a luta não se encerra nesta conquista. Enquanto comemora, mãe de santo Maria Branquinha, que acompanhou todo o processo de tombamento, expressa o desejo de que a festa venha a ser tombada também pelo Estado.“Tô muito feliz, porque a nossa mãe, Iemanjá, hoje ela é um Patrimônio aqui pela prefeitura, isso é uma satisfação muito grande. Se Deus quiser vamos caminhar para o estado”, conclui.

Estado laico e liberdade religiosa

“Eu acho que esse registro hoje não é por acaso. Ele vem num momento muito oportuno, dado a situação do país hoje”, ressaltou Graça Martins, coordenadora da célula de Gestão em Patrimônio Imaterial da Coordenação do Patrimônio Histórico e Cultural da Secultfor.

“Eu acho que esse registro hoje não é por acaso. Ele vem num momento muito oportuno, dado a situação do país hoje ”
Graça Martins

A afirmação se refere à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), tomada no dia 27 setembro, -- dois dias antes do tombamento da Festa de Iemanjá em Fortaleza -- de que o  ensino religioso confessional está autorizado nas escolas, o que garante que os educadores promovam suas crenças em sala, e as aulas tenham por base uma única religião.

 

A decisão foi feita a partir do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439, promovida pela Procuradoria-Geral da república, que propunha que o ensino religioso fosse apenas uma apresentação geral das crenças, e os professores não representassem seus credos em aula.

O Brasil se mostra um país predominantemente católico. Segundo o censo de 2010 do IBGE, 64% da população se declarava católica. A segunda maior religião é a evangélica que corresponde a 22% da população. A decisão preocupa as religiões minoritárias, como as de matriz africana umbanda e candomblé, que correspondem a 0,3% da população e não tem um espaço social forte como as outras duas religiões.

Oficialmente, o Brasil se manifesta como um Estado laico. Tal definição  exige a separação entre Igreja e Estado, portanto não se pode existir influência religiosa nas tomadas de decisão. A constituição vigente, artigo 5º, inciso VI, garante a liberdade de crença e cultos religiosos no país.

"É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias"

ARTIGO VI

O uso de símbolos religiosos em repartições públicas e a denominada bancada evangélica são alvos de crítica, pois são vistos como fatores que vão de encontro a ideia de laicidade do país. Atualmente a bancada evangélica se tornou uma das mais expressivas no Congresso. As pautas defendidas por essa frente parlamentar são de caráter conservador e ameaçam os avanços nos direitos de minorias como mulheres, grupos LGBTs e religiões minoritárias.

 

Esses fatores geram insegurança nos locais que devem ser regidos por imparcialidade. “Você vê aí figuras chaves, pessoas que deveriam preservar a lei, recorrer a ritos religiosos no exercício de uma função legal. Então você vê sessões do Congresso Nacional iniciar com rezas, você vê aí crucifixos na sala de certas autoridades onde são julgadas a vida das pessoas’, reflete Jânia Perla Aquino, antropóloga do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC).

 

O cenário social conservador parece se contradizer com a ideia de um povo acolhedor que o brasileiro tem de si. “Esses movimentos no sentido de uniformizar crenças, uniformizar valores, reprimir adeptos de religiões afro brasileiras, homossexuais. E esse acirramento da luta de classes, isso é muito negativo para toda uma auto imagem que o brasileiro gosta de preservar de si, como um povo animado, um povo pacífico, um povo que gosta de interagir, que é receptivo à diferenças”,  aponta Jânia.

Segundo o último censo do IBGE, realizado em 2010, o total de umbandistas no Brasil é de 407.334
Umbandistas no Brasil
Passe o mouse sobre as setas para saber o número de umbandistas de alguns estados. A lista completa pode ser acessada aqui

Intolerância religiosa

Segundo dados divulgados pela Secretaria dos Direitos Humanos (SDH), em 2016 foram registradas 759 denúncias de discriminação religiosa pelo Disque 100 em todo o Brasil. Destes números, 74 correspondiam a vítimas adeptas da Umbanda. Já em 2017, de janeiro à junho, foram registrados o total de 169 denúncias, sendo 26 correspondentes à umbandistas.

Porém, esses números não correspondem à realidade. Zelma Madeira, professora de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece), afirma que existe uma série de fatores que contribuem para que muitos casos de intolerância religiosa não sejam divulgados. Dentre esses motivos estão a forma como essas denúncias são registradas e se essas denúncias entram nos dados oficiais. “Será que ele consegue sair já nos dados como intolerância religiosa, como violação ou vai se diluindo a partir da interpretação que faça o representante, o agente do estado que vai receber a denúncia”, questiona Zelma.

 

A intolerância se manifesta em diferentes níveis, desde piadas e reprodução de estereótipos negativos;  agressões verbais, como ofensas e xingamentos; até agressões físicas. Também é reproduzida em diferentes ambientes como no familiar, escolar e no trabalho.  

 

Natália Alencar é umbandista e não tem vergonha de assumir sua religião às pessoas. A jovem relata algumas experiências negativas que já teve no âmbito afetivo.“Teve pessoas da minha família que me excluíram do facebook, e até pra namorar você encontra pessoas que ficam de cara torta quando descobrem que você é da Umbanda. ‘Ah, vai fazer uma amarração pra mim’. Não, não preciso fazer amarração".  

 

Pai Clayton de Iemanjá, lembra de um caso mais extremo que repercutiu socialmente este ano. “ E agora há pouco tempo também no Rio de Janeiro aquele pastor, que eu acredito também que não seja pastor que todo canto existe falso profeta, um verdadeiro pastor não vai fazer aquilo. ”, pondera Clayton. 

 

Diante de um cenário difícil e tortuoso, pai Clayton garante que não se desanima e lembra que desde sempre, a resistência está ligada à sua crença.“Resistimos à escravidão, resistimos à fome, resistimos ao tronco e ao chicote, resistimos à polícia, e não vai ser agora que a gente vai baixar a cabeça. É isso.”    

 

No Brasil a intolerância religiosa é considerada um crime de ódio grave e inafiançável. A prática está enquadrada na lei 9.459 e prevê uma pena de um a três anos de prisão ao agressor.

Denúncias de intolerância contra adeptos da umbanda 2015 - 2017.1
Fonte: Disque 100
A intolerância se manifesta em diferentes níveis, desde piadas e reprodução de estereótipos negativos;  agressões verbais, como ofensas e xingamentos; até agressões físicas

Peso histórico

Existem razões mais profundas que podem explicar os ataques à uma religião considerada genuinamente brasileira, como aponta Zelma. “Alguns chamam de intolerância religiosa, outros de violação de direitos ou racismo religioso. O certo é que, você só vai entender o que eles sofrem se você entender que essa sociedade brasileira é racista. E mais que racista, nós temos um racismo estrutural, que toma conta de todas as instituições da sociedade brasileira. É como uma rede, abala as relações sociais".

 

Para compreender a ideia de racismo estrutural é necessário entender o processo de formação cultural e social do Brasil. Os portugueses vieram ao país tendo a religião católica como oficial. Índios brasileiros foram obrigados a deixarem seus rituais e crenças e adotarem os dogmas católicos. O mesmo aconteceu coms os negros que vieram ao Brasil como escravos. ​

 

A condição de escravidão tirou do negro africano sua identidade cultural, mas estes criaram suas próprias raízes no país. Após a escravidão a sociedade não se preocupou com a reinserção social dos negros, também não perdeu os ideais de superioridade branca. Então é preciso pensar na inferiorização de tudo ligado a cultura negra e a marginalização dos elementos culturais como a religião, a capoeira, a estética, e os próprios povos que se tornam invisibilizados.

É preciso pensar na inferiorização de tudo ligado a cultura negra e a marginalização dos elementos culturais como a religião, a capoeira, a estética, e os próprios povos que se tornam invisibilizados

Hoje apesar de já não ser uma religião negra, pois engloba um grande número de adeptos de outras raças, a religião sofre com essa formação histórica.

 

“Depois de um processo de mais, eu diria, de emancipação, hoje a gente volta a esse cenário de início do século de perseguição às manifestações culturais de segmentos sociais dominados.”, salienta Jânia Perla Aquino, antropóloga do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC).

 

“Então a gente precisa entender tudo isso, porque se a gente tem um entendimento mais profundo em cima de um fenômeno complexo, a solução também é complexa, a solução não é rápida.”, explica Zelma.

A luta continua

O caminho para combater a intolerância não apresenta uma solução única e rápida. Para a umbandista Natália Alencar, ensinar o respeito é fundamental, é uma lição que deseja passar para sua filha. “Eu tenho uma filha de três anos, ela vem para cá [para o centro de umbanda] comigo sempre, e eu ensino a religião desde pequena até para criar um ser humano menos intolerante. Quando ela crescer ela vai escolher a religião dela, mas ela já vai ter conhecido um pouco da umbanda e não vai ser preconceituosa com essa religião”.

 

Pai Clayton de Iemanjá comemora e  faz uma análise sobre os esforços e as conquistas já garantidas. “ Foi com muita garra, muita determinação e muita benção dos guias, que a gente hoje conseguimos esse espaço na sociedade que ainda é pequeno, mas se for comparar com antes, demos um grande passo sim.", reflete.

bottom of page